Manifesto efêmero

Eu odiava a noite quando pequeno. Sabotava com os olhos fechados. Dormia antes que pudesse sentir algum vazio me invadir. Pesadelos tinha, porque tudo em mim não fora modelado e a minha mente recitava falta de poesia murcha, sensata e infeliz, falta o que? Aquilo que se tenta esconder e que sai sem sopro mágico, sem sorte ao acaso. Pesadelos eu tive porque não amava, nem doía, precisava descontar em alguma coisa, e aí os pesadelos vinham. Considero-me, hoje, homem com alguns resquícios de criancice, como um desejo insano de tapar a ferida, porque tudo era bom quando eu era pequeno.

Depois, a noite invadiu. Não só a mim, nem a outra parte que eu não considero minha, nem aquela outra parte dada, nem a parte tomada de outro alguém. Só sei explicar a escuridão de tudo, tudo mudando sem nem saber como mudar, mas mudando porque obrigação havia em mudar. Meu sensato enjôo roxo de manhã, este enfeitado de náuseas nas aulas de Karatê, foi tomado pela fome de menino criado. Comer satisfaz a ansiedade, percebo agora. Comer sussurra para o ego tudo o que você não tem coragem de sussurrar, porque acha feio. Não me satisfaço com pouco, por isso engrosso o que posso com farinha. Por isso ordeno, por isso derramo as xícaras de café e até me dano em dias sem dormir, eu vivo entre meus próprios limites.

Disseram-me, certa vez, quando amei certa garota na adolescência, que eu não tinha dote... Mas que dote haveria de ter além de meu próprio amor sagrado? Um amor prepotente que se firma sem questionar, que indica futuro, nem reclama e até perdoa... Meu dote é meu coração, mesmo que na ilusão de que alguém possa amá-lo, mesmo que na esperança que me aflige todos os dias e causa dano a minha castidade. Porque cada vez que me corrompem, eu deixo por assim ficar.

Desculpe, mas eu não fundei reinos. Eu só me completo no meu bigode para não ter que me completar em algo mais complexo. Então minha velhice é quase automática. Mas sei que sou escritor. E não porque sou bom, disso nunca tive tanta certeza, disso nunca terei. Nem é pela modéstia, mas exatamente por sabedoria ser dada constantemente, ejaculada junto ao gozo do riso, massacrada nos filmes de guerra. Sabedoria se compra também, porque é experiência, porque, de qualquer modo, arrependimento também é sabedoria, esperteza também é sabedoria. E se quiser duvidar, não recorra a mim. Eu escrevo exatamente pela dúvida. Se eu tivesse certeza... Ah, se eu tivesse certeza!

Eu só descobri por agora que cuspi no prato em que comi, descubro agora que não amo mais ou melhor do que a mim, que não me amo o suficiente, que não amo a ninguém o suficiente. E esse auto-sacrifício em forma de melodrama não pára por aqui, nem pelos viéis de ilusão que já escrevi. Eu sou repetitivo ao extremo, mesmo sem querer. E está indistinta agora a dor, está por cessar esse calor que tanto tenho medo de não mais viver; talvez esse seja o desafio que encontrei, a mágica de me fazer doer.

E quanto ao eu lírico... Some a todo instante, some nas minhas tantas personalidades impacientes e inquietas, prontas para explodir todas juntas e acabar saindo somente quem deveria ficar, acaba saindo de mim o que deveria torcer de alegria nos estádios de futebol. Virginiano fajuto, eu... Nem ao menos sei me aperfeiçoar, nem ao menos conheço meus mínimos detalhes, nem ao menos predigo o futuro, apenas copio um modelo de futuro que serve para arrependimento alheio nas horas vagas, para minha pequena torcida que age interiormente longe dos campos de futebol. Ela grita gol, sem saber que isso não é vitória.

Nessa sede de vingança, nesse acesso de raiva, perco paz, sou até chamado de possessivo para injeção de anti-ânimo. É por isso que pergunto sempre onde coloquei aquela parte de mim que revigora um altruísmo frequente. Só Deus a viu, mas não sou tão ousado. Eu converso com Deus em momentos desesperados, eu sinto a vergonha cair sobre a minha vergonha. Vejo até a seda rasgando e mostrando o que escondo por dentro. Rezo baixinho, às vezes, para que Deus não veja, não escute, não leia, não. Não deixei para trás a minha fé, só preciso me ver de trás pra frente e perdurar um pouco essa imperfeição. Se sofro sendo um quase-perfeito, por que não sofrer sendo imperfeito? A proporção da dor é a mesma? Não sei, não me ouso a discutir com Deus. Talvez seja assim e pronto, talvez já tenha nascido tão imperfeito de não me dar conta e agora estou mais imperfeito do que já fui um dia, mas não discuto.

Vou me deixando levar às vezes pelas ondas do mar, pelo som. Eu presto muita atenção nos sons... E nem a falta existe deles só mesmo pela falta se deixar existir. Aqui mesmo, existe som, aí mesmo no seu pensamento. E consigo até ouvir a minha voz pronunciar pa-la-vra por pa-la-vra, consigo ouvir minha respiração e o ronco louco do meu estômago. E, por falar em estômago, pararei 15 minutos para comer. Pois é, como é rápido.


Não gosto de fingir, nem mentir, nem omitir, mas não me dá outra escolha essa egolatria... Ela se expõe sempre que não a reconheço, por isso prefiro reconhecê-la e acolhê-la intrinsecamente. Quando eu era quase-perfeito era mais fácil. Hoje sou um pobre miserável amador de vinil e vitrola, que vive do passado como o passado já viveu um dia no presente. Jogo as minhas palavras como posso e perdôo aos que não gostam; não sei viver sem minhas palavras.

Meu medo desenha todos os dias o meu destino, muito provavelmente para que eu me lembre dele e até tente mudá-lo. Meu medo de perder, meu medo de amar. Sou cheio de medos, escondo alguns, exponho outros e guardo alguns segredos para mim e somente essa parte de mim vê, a parte que doei retruca sempre. Poderia enxergar, mas cega é de planos futuros. Não gosto muito de falar do futuro, também tenho medo dele, porque apesar de minha escrita ser a minha sobrevivência emocional, reconheço apenas o valor emocional, eu dou a minha escrita, não a vendo, não a possuo depois de escrever, afinal isso é apenas um eu lírico, ou não?

Vários eu líricos gritaram. Eles deixam sempre uma marca em mim quando passam. Outros resolveram permanecer contidos na alma, sem aflorar minha vontade de ser um semi-deus. Vários loucos gritaram, vários morreram, outros resolveram permanecer. Dei a face de todos esses eus em todos reflexos cobertos, por um todo, desmanchavam-se, eram assassinados não por mim. Na verdade, não só por uma parte de mim, a outra, repito, não comando. A outra se solta pelo vento e nem quer mais voltar. Pergunto-me frequentemente onde essas outras partes estão. Algumas ainda conheço por perto, outras roubaram de mim o que eu tenho de melhor... E Deus ajudou. Por que tal lição a um quase-perfeito? Só para provar que a minha moral também pode ser afetada? Só para provar que uma gota não pode furar uma pedra, que uma porcelana não pode ser colada sem deixar marcas, que não se acha agulhas em palheiros.

Eu descobri muito no que chamam aqui de vida, até descobri que já morri várias vezes e várias pessoas já morreram em mim. Soluço de uma infelicidade febril, nas noites frias demais, febril de alma, da minha grandiosa alma que tento conservar, porque o corpo continua desamparado nesse lugar gélido feito verão que não chegou por dentro. Angustio então a minha voz que canta rouca do choro desgastado. E ainda acham que choro por drama... Mas não dispenso a quase-ofensa. Talvez meu drama seja boa parte de mim e de quem eu quero ser, só por isso não sei ser dramático, sei apenas viver quem já sou.

Dormi, e não sei acordar. Ou será que acordei e não sei dormir? Onde está o limite para o que é real? Eu digo: é real e é sonho. Essa minha falta de complexidade mata meu inimigo, porque é simples quando digo: te amo. E é simples amar, basta querer. Se se recusa, evito. Choro, choro, choro, como dramático que sou, mas recuso não-amor. Estou cheio de não-amores perto de mim, estou cheio dessas ironias e sarcasmos que me colocam contra o espelho e me fazem produzir lágrimas que não deveriam cair. Meu casamento comigo permanece, mesmo não tendo a mim mesmo por completo, eu repito: meu dote é o meu coração. De que importa o resto? De que me importa razão se ela por si só não se completa? Se a razão está exatamente na sensatez da perspectiva que o tempo produz?

Nada muda essa linha do tempo, ela permanece intacta, enquanto todos os pavores de cada humano se concretizam dentro dela mesma, começam nela e acabam nela, enquanto os casamentos entre sol e lua, a mudança da Terra e a vida em Marte se concretizam. Enquanto viver é apenas essa linha do tempo que não se define e nem se decide. E quem espera pelo tempo? Como esperar? Como ignorar cada segundo de briga entre a mente e o coração? Como ignorar sentença enérgica de apelo pelo companheirismo? Aquela mesma sentença que te transporta a um mundo que você nunca imaginaria ter sonhado se não estivesse acompanhado de seu outro eu, de uma parte que está fora de você, mas que é sua, que vive e pulsa por si só, mas que se concretiza em olhares não sistemáticos e sorrisos carismáticos.

De nenhum amor eu me mato. De nenhuma dor serei apenas um ser vivo pertencente a natureza que não faz a mínima idéia de sensibilidade. É quase um grito desesperado pedindo socorro, é quase não ser.

Eu vim da luz do sol, porque é quente, tem fome e sede de mais, porque é felicidade exaustiva como o amarelo que todos os dias repassamos simbolicamente em alegria. Herdamos estes signos.

Contentar-me-ei, enfim, por não dizer.

Obrigado a ser quase-calado, quase-imperfeito.

segunda-feira, 28 de março de 2011 às 20:23
postado por Rafael Sady
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  Pois

Indago uma multidão escondida em mim, escuto em voz e violão tudo o que eu peco por não ter. De nó na garganta também sou feito, desse nó que silencio à noite; me prendo, me obrigo a me prender. Solto apenas o que me fortifica, forço me fortificar, porque outro modo não há de viver. Viajo de quando em quando para lugares em que me encontro só. Sobressaio nesses lugares inabitados, na ausência de ar dos mais fracos, na água doce corrente.
Não procuro por algo menor que a liberdade, procuro por algo maior que o mundo em valor. Nunca pedi estrelas, nem castelos. Peço o que posso dar, o que dôo de mãos abertas, dou o que me reverte em humano. Se me choro por dentro, é por mero desespero que prometo fuga aos poucos. Sou um desastre. Meu andar sempre a frente do meu destino tropeça de sempre em sempre, mas acabo me deixando levar já que carrego um órgão tão mole no peito.
Recuo da dor bem devagar, e um restinho dela sempre me tenta ao outro lado. Trocaria todos os meus porquês contidos por uma incerteza fiel qualquer. E meu lábio plural vai quase dizendo sim... Acordei. Como eu poderia saber que foi só um sonho?

terça-feira, 8 de março de 2011 às 22:21
postado por Rafael Sady
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  17:00

Nem as minhas vozes se comportam em frente a decisão do meu próprio penar. Faltariam amores inclusos sob ventos tortos nesse cinza que sai de dentro. Um ou outro blues canta dentro de mim até o ponto de não me fazer decidir um determinado roteiro. E existem escalas de classificação; se me mudo, não me perco a ponto de voltar ao que fui, porque ainda existe gelo guardado, ainda que a falta de esperança me falhe na inveja de outros casais. Sobretudo agradeço aos filmes de ação, sobretudo os pássaros que são livres quando podem voar. Eu me rendo e me entrego nisso que chamo desgosto, praticamente azedo no final. Com pena de minha própria imagem retaliar minha própria sedução. Somos fantásticos possessivos, eu diria, nós com nossos monólogos. Não intermedia dor além de falsa face murcha. O meu fato é esquecer, meu tenro cargo, minha caminhada de doloridos pés sem botas, machucados. Sou ferido por só, por dó dos meus companheiros, por lamento das pessoas que abraço. Sou só porque espiritualizo minhas ações com o meu próprio deus, me criei assim. Entre tiques de minha sombra, aceito. Sigo sim ao que meço, e digo não ao que disfarço com um cigarro.

quarta-feira, 2 de março de 2011 às 19:49
postado por Rafael Sady
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  Dia secreto

Um dia, nós faremos amor, e você vai adormecer logo depois. Mas eu não, eu vou ficar olhando para você e, no silêncio, continuarei acordado a te olhar. Eu levantarei, me olharei no espelho do banheiro, me sentirei o homem mais feliz do mundo. Não precisarei escrever... Escrever é coisa de gente solitária, escrever é coisa de gente que precisa ter com que se completar. Eu vou apenas me deixar perder, me deixar perder de todos os modos. Minha poesia virará prática, meu amor idealizado pulará da escrita de hoje para esse futuro contigo. Nesse dia, eu voltarei para a cama e deitarei atrás de você, te farei carinho. E, por mais insensato que possa parecer, eu deixarei tudo de lado, tudo em segundo plano, só para ter mais um minuto com você, só para aproveitar mais os segundos te tocando, te acariciando, te beijando. Escrever pode esperar, o meu amor não.

RMAS & PHSCA

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011 às 18:10
postado por Rafael Sady
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  Trocando em miúdos, Chico Buarque

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011 às 06:40
postado por Rafael Sady
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